Depois de bater no fundo, o Líbano deve imperativamente vir ao de cima.

«A UE está já a ajudar a população libanesa mais vulnerável e está disposta a fazer mais - se os dirigentes libaneses adotarem as medidas necessárias.»
Todos nos recordamos como há um ano, a 4 de agosto de 2020, 2750 toneladas de fertilizantes à base de nitrato de amónio explodiram no porto de Beirute, fazendo mais de 200 mortos, ferindo milhares de pessoas e causando graves danos a dezenas de milhares de habitações.
Os peritos estimaram que a explosão representava o equivalente de 1000 a 1500 toneladas de TNT - cerca de um décimo da intensidade da bomba nuclear lançada em Hiroshima em 1945. Trata-se de uma das maiores explosões não nucleares da história, muito mais forte do que uma explosão provocada por uma arma convencional. Como é que isto aconteceu? Por que razão não foram adotadas medidas para prevenir esta catástrofe? Um ano depois de aberto, o inquérito, que era suposto esclarecer as causas desta tragédia, ainda não produziu quaisquer resultados.
«Os peritos estimaram que a explosão representava o equivalente de 1000 a 1500 toneladas de TNT - cerca de um décimo da intensidade da bomba nuclear lançada em Hiroshima em 1945.»
Durante a minha visita ao Líbano, em junho último, reuni-me com os dirigentes libaneses e com membros da sociedade civil. Transmiti as nossas preocupações, bem como as nossas intenções, de forma extremamente clara. A formação do Governo continua num impasse, uma vez que as diferentes fações políticas não conseguiram chegar a um compromisso, não obstante as diversas tentativas, e continuaram a regatear a atribuição das pastas ministeriais.
Ninguém estava decidido a tomar as medidas corajosas que nós, e a comunidade internacional em geral, reclamávamos para pôr termo a um colapso económico sem precedentes - o Banco Mundial considera que a crise económica libanesa faz parte das 10 ou mesmo das 3 crises recentes mais graves do mundo. Segundo as Nações Unidas, a parte da população afetada pela pobreza extrema terá triplicado entre 2019 e 2020, tendo passado de 8 % para 23 % da população. Segundo uma avaliação recente da UNICEF, 77 % das famílias libanesas não dispõem de alimentos suficientes, nem de dinheiro suficiente para os comprar. Nas famílias de refugiados sírios, este número atinge os 99 %.
Este colapso económico afetou igualmente as capacidades das Forças Armadas libanesas, um garante essencial da estabilidade no Líbano. Antes da crise atual, a maioria dos 80 000 membros do pessoal empregado pela instituição ganhavam o equivalente a 800 dólares US por mês, mas devido à desvalorização da moeda libanesa, recebem agora entre 70 e 90 dólares US. Com efeito, foi importante que França, com o apoio de Itália, tenha organizado, em 17 de junho último, uma conferência internacional de apoio às Forças Armadas libanesas, uma instituição com a qual a UE colabora desde há muitos anos. A estabilidade e a segurança do Líbano revestem-se de uma importância essencial para a região, bem como para a UE.
«Esperamos que Najib Mikati consiga formar governo o mais rapidamente possível, pois voltámos à estaca zero, tendo sido desperdiçados muitos meses preciosos».
Desde há um ano que o país é dirigido por um governo de gestão, que, na realidade, não realizou quaisquer progressos no que toca às reformas necessárias, nem às conversações sobre um programa indispensável do FMI. As negociações entre o Presidente Michel Aoun e o Primeiro-Ministro indigitado Saad Hariri com vista a formar governo arrastaram-se durante mais de nove meses, em parte devido a divergências sobre a composição do Governo, mas também devido a uma desconfiança mútua. Após nove meses de negociações, em 15 de julho, Saad Hariri recusou-se a formar governo devido a divergências com o Presidente Michel Aoun. Na sequência das consultas parlamentares realizadas na semana passada, Najib Mikati foi nomeado Primeiro-Ministro indigitado. Está agora a trabalhar para formar governo, e esperamos que o consiga fazer o mais rapidamente possível, pois voltámos à estaca zero, tendo sido desperdiçados muitos meses preciosos. No entanto, embora as possibilidades de assistir à formação de um governo tenham aumentado ligeiramente - nada está garantido ainda. Apesar de uma grande pressão pública e política para a formação de um governo, as dificuldades políticas encontradas por Saad Hariri nos últimos meses não desapareceram. É importante que seja alcançado, pelo menos, um compromisso, mesmo com um mandato limitado para preparar as eleições do próximo ano e para debater um programa de ajuda com a comunidade internacional de doadores.
Para fazer face a esta situação no Líbano, o Conselho da UE adotou um quadro para medidas restritivas específicas em 30 de julho último. Estamos dispostos a utilizar o nosso conjunto de instrumentos para operar a mudança no Líbano - adotando tanto medidas positivas como medidas negativas. Com efeito, todas as figuras públicas libanesas com quem falei durante a minha visita em junho disseram-me que o eventual recurso a sanções era essencial para exercer uma pressão suficiente sobre os dirigentes políticos (embora todos atirem as culpas uns aos outros pelo impasse em que o país se encontra). Estamos perante um facto incontornável: o único culpado da situação é a classe política libanesa. A atual situação no Líbano é uma catástrofe de origem humana e autoinfligida, e a partir de agora compete aos dirigentes políticos do Líbano encaminhar o país para a recuperação.
«Estamos dispostos a utilizar o nosso conjunto de instrumentos para operar a mudança no Líbano - tanto medidas positivas como medidas negativas.»
O quadro adotado recentemente prevê assim a possibilidade de impor sanções contra pessoas e entidades responsáveis por atentar contra a democracia ou o Estado de direito no Líbano praticando uma das seguintes ações:
- entravar ou comprometer o processo político democrático, obstruindo de forma persistente a formação de governo ou entravando ou comprometendo gravemente a realização de eleições;
- entravar ou comprometer a execução de planos aprovados pelas autoridades libanesas e apoiados por intervenientes internacionais pertinentes, nomeadamente pela União, que se destinem a aumentar a responsabilização e a boa governação no setor público ou a executar reformas económicas de importância crítica, nomeadamente nos setores bancário e financeiro, incluindo a adoção de legislação transparente e não discriminatória em matéria de exportação de capitais;
- cometer irregularidades financeiras graves relativamente a fundos públicos, na medida em que os atos em causa sejam abrangidos pela Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, e proceder à exportação não autorizada de capitais.
As eventuais sanções consistirão na proibição de viajar para a UE e no congelamento de bens, no caso das pessoas, e no congelamento de bens, no caso das entidades. Além disso, pessoas e entidades da UE ficam proibidas de disponibilizar fundos a pessoas e entidades incluídas na lista de sanções.
Atualmente, não há nomes nesta lista. E preferimos, de longe, não recorrer a este instrumento. Por conseguinte, aproveitei a conferência para repetir a nossa principal mensagem: que é necessário formar o mais rapidamente possível um governo que seja capaz de fazer face aos atuais desafios para o bem de todos os libaneses. É importante que o inquérito sobre a explosão no porto de Beirute seja concluído. É necessário concluir urgentemente um acordo com o FMI. Os preparativos para as eleições de 2022 devem começar rapidamente. É crucial que as grandes reformas há muito aguardadas – setor da eletricidade, sistema bancário, etc. – sejam adotadas e implementadas. Nada de novo a este respeito: as tarefas a executar continuam a ser as mesmas, mas com prazos cada vez mais curtos.
Um aspeto positivo a mencionar é o facto de também estarmos dispostos a continuar a recorrer a medidas positivas para ajudar o Líbano. Só em 2020, a UE disponibilizou cerca de 333 milhões de EUR de assistência a este país. Estamos dispostos a fornecer mais assistência ao Líbano logo que seja celebrado um acordo com o FMI. Poderíamos também enviar uma nova missão de observação para contribuir para o bom desenrolar das eleições do próximo ano. Estamos também dispostos a debater com um novo governo as prioridades e os principais domínios de cooperação entre a UE e o Líbano até 2027. Há pois uma série de possibilidades para continuar a ajudar o Líbano.
«Uma vez mais, a comunidade internacional foi muito clara: nós podemos ajudar, mas o Líbano tem de fazer a sua parte e fazê-lo rapidamente.»
Na conferência internacional de ontem, organizada pela França e pelas Nações Unidas, que visava apoiar as populações mais vulneráveis do Líbano, a comunidade internacional foi, uma vez mais, muito clara: Podemos ajudar, mas o Líbano tem de fazer a sua parte e fazê-lo rapidamente.
Como já referi anteriormente: os cidadãos libaneses merecem melhor e já demonstraram ao mundo o quanto podem ser extremamente resilientes e dotados de recursos. Reconstruíram o país após 15 anos de guerra civil - e, enquanto espanhol, sei como essa tarefa pode ser difícil. Estou, pois, convencido de que, quando existir uma vontade comum entre os diferentes grupos e formações do país, o Líbano pode voltar a reerguer-se.
O povo libanês deverá, então, analisar sem complacência os princípios em que está assente o seu país, bem como o contrato social e o modelo económico, e introduzir as alterações necessárias para garantir a sustentabilidade de um Líbano seguro, estável e próspero. É explorando de forma crítica os princípios fundamentais do seu país que os libaneses encontrarão as respostas certas, e estamos dispostos a ajudá-los processo, se assim o desejarem.
O famoso cineasta francês Claude Lelouch afirmava que «C’est en touchant le fond que l’on refait surface» («É depois de bater no fundo que voltamos à superfície»). Esta imagem é bastante adequada à situação atual do país: a única saída é para cima, e o Líbano deve regressar urgentemente à superfície.
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