Assembleia Geral das Nações Unidas: uma semana em Nova Iorque
"A Assembleia Geral das Nações Unidas ocupa anualmente um lugar de destaque no calendário diplomático. Conseguimos fazer ouvir a voz da Europa no que toca a assuntos internacionais e ao desenvolvimento de estruturas universais que permitam construir um mundo melhor."
A semana da Assembleia Geral das Nações Unidas é o ponto culminante do calendário diplomático. Durante uma semana, o mundo político e diplomático reúne-se em Nova Iorque para cumprir um calendário pejado de cimeiras, reuniões ministeriais e bilaterais, entrevistas com os meios de comunicação social, e por aí fora. Uma semana de "encontros-relâmpago da diplomacia". Para a UE, foi uma oportunidade de reiterar o nosso apoio às Nações Unidas e ao multilateralismo e de abordar as questões mais preocupantes a nível mundial: o Afeganistão, o Plano de Ação Conjunto Global (PACG, o acordo nuclear celebrado com o Irão) e, claro está, as repercussões que tiveram o anúncio da parceria AUKUS e o cancelamento do contrato entre a Austrália e a França respeitante à compra de submarinos. A semana constituiu uma oportunidade de reunir com numerosos homólogos e parceiros de todo o mundo num espaço de tempo muito curto para abordar estas questões.
"A semana da Assembleia Geral das Nações Unidas é o ponto culminante do calendário diplomático. Durante uma semana, o mundo político e diplomático reúne-se em Nova Iorque para cumprir um calendário muito preenchido."
Os dirigentes mundiais dirigiram-se à Assembleia Geral para expor a forma como, a seu ver, podemos fazer avançar o mundo em que vivemos e recordaram-nos que nos deparamos com várias encruzilhadas. Citando, por exemplo, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, "chegámos ao momento da verdade" e é tempo de "produzir resultados, reconquistar a confiança e infundir esperança". Lembrou que a própria razão de ser das Nações Unidas e da cooperação multilateral é a convicção de que somos capazes de intentar grandes feitos quando trabalhamos juntos. Também o presidente dos EUA, Joe Biden, sublinhou que temos pela frente uma "década decisiva para o nosso mundo" e que o planeta se encontra num "ponto de inflexão na História". Prometeu que os EUA se empenhariam em trabalhar com os seus parceiros para atravessarem em conjunto esta fase de inflexão e salientou que importa fazê-lo no quadro de instituições multilaterais, lançando mão de uma "diplomacia incessante", e não da força militar. Falando em nome da União Europeia, o presidente Charles Michel sublinhou igualmente que "nos vemos hoje perante um novo momento de charneira na história da humanidade" e que a UE continuará a ser o principal patrocinador da paz e do desenvolvimento sustentável. Teremos também de desenvolver a nossa autonomia estratégica e de ser menos dependentes, por forma a reforçar a nossa influência positiva.
O AUKUS e as relações transatlânticas
No início da semana, todas as atenções se viraram para o Pacto com a Austrália, o Reino Unido e os EUA e o impacto que poderá ter nas relações transatlânticas. A notícia apanhou o mundo de surpresa. As reações que provocou tiveram não só a ver com o acordo sobre a compra de submarinos que não foi por diante, mas também com as suas repercussões mais vastas nas relações UE-EUA e com o papel da UE no Indo-Pacífico. A falta de consultas e de comunicação entre parceiros tão próximos quanto nós criou dificuldades concretas. Deu uma imagem negativa de um Ocidente descoordenado ou até mesmo dividido, quando deveríamos dar provas da nossa coordenação e determinação, nomeadamente no que toca aos desafios geoestratégicos.
"A falta de consultas e de comunicação entre parceiros tão próximos quanto nós criou dificuldades concretas e deu uma imagem negativa de um Ocidente descoordenado ou até mesmo dividido."
Debatemos a questão do AUKUS com os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE na segunda-feira e os ministros manifestaram claramente a sua solidariedade para com a França. Decidimos pedir aos EUA, à Austrália e ao Reino Unido que explicassem como e por que motivo tomaram tal decisão. Foi também ponto assente que os desafios colocados pela região do Indo-Pacífico requerem mais cooperação, e não maior fragmentação. A Estratégia da UE para o Indo-Pacífico – que apresentámos no mesmíssimo dia do anúncio da aliança AUKUS – diz precisamente respeito à forma como a UE intensificará o seu empenhamento na região e reforçará os compromissos para com ela assumidos, inclusive em matéria de segurança. Uma das prioridades claras da estratégia é trabalhar com parceiros que manifestem essa vontade e comunguem da mesma visão.
Ainda na segunda-feira, reuni-me com Marise Payne, ministra dos Negócios Estrangeiros australiana, e sublinhei a nossa expectativa de que parceiros próximos mantenham a comunicação e se consultem mutuamente. A ministra e eu próprio reconhecemos que a UE e a Austrália têm muitos interesses comuns no Indo-Pacífico, pelo que importa apoiar a estabilidade e a cooperação regionais e manter uma ordem regional aberta e assente em regras.
Na quinta-feira, durante uma conversa telefónica entre os presidentes Joe Biden e Emmanuel Macron, os EUA reconheceram que o processo não foi bem conduzido e que teria sido salutar proceder a consultas prévias. Salientaram também a importância de colaborar com a UE e os seus Estados-Membros, incluindo a França, na região do Indo-Pacífico. Crucial foi também o facto de o presidente Joe Biden ter expressado claramente o seu apoio ao reforço do papel da UE em matéria de defesa, complementar do da NATO, mensagem sem dúvida importante para o futuro das relações UE-EUA.
Uma aliança sólida entre os Estados Unidos e a UE
Esta mensagem positiva foi reiterada por ocasião do meu encontro com o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken. Reafirmámos a forte aliança que une os Estados Unidos à UE e decidimos continuar a trabalhar em medidas práticas para aprofundar o nosso diálogo e a nossa cooperação. O problema poderia ter sido evitado se se tivesse acautelado a realização de contactos prévios entre os parceiros. Precisamos de criar um sistema capaz de evitar que, no futuro, surjam problemas como os que envolveu agora o caso AUKUS. Um diálogo estruturado com os Estados Unidos em matéria de segurança e defesa, como o que decidimos estabelecer durante a Cimeira UE-EUA no início deste ano, poderá constituir a plataforma ideal para levarmos por diante esse projeto.
Muito trabalho nos espera: restabelecer a confiança e aplicar vigorosamente a nossa própria Estratégia para o Indo-Pacífico, em colaboração com os EUA e outros países. E, para garantir que se avance verdadeiramente na aquisição de capacidades de defesa, temos de assumir uma parte maior das nossas responsabilidades.
"Uma UE militarmente capacitada e com uma orientação estratégica é do interesse tanto dos EUA como da NATO."
Há muito que acredito que uma UE militarmente capacitada e com uma orientação estratégica é do interesse tanto dos EUA como da NATO. Sobretudo na vizinhança da UE, há e haverá ocasiões em que nem os EUA nem a NATO se querem envolver; nessas alturas, a Europa tem de ser capaz de agir sozinha. É essa uma das razões pelas quais estamos a trabalhar nas orientações estratégicas para definir as nossas ambições comuns. Precisamos é de ações concretas em matéria de capacidades e, se necessário, de reforçar a nossa vontade de as utilizar.
O Irão e o acordo nuclear
Recentemente, registaram-se também alguns desenvolvimentos importantes no que respeita ao Irão e ao acordo nuclear: as eleições iranianas e a celebração de um acordo entre a Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA) e o Irão sobre as medidas de verificação, entre as quais a utilização de câmaras nas instalações nucleares iranianas. Face às preocupações crescentes com a expansão das atividades de enriquecimento levadas a cabo pelo Irão e à estagnação das negociações em Viena nas últimas semanas, este acordo esteve prestes a ser formalmente desaprovado pelo Conselho dos Governadores da AIEA. Nestas circunstâncias, e na minha qualidade de coordenador do acordo nuclear com o Irão (também conhecido como Plano de Ação Conjunto Global), esperava conseguir convocar uma reunião ministerial, à semelhança do que aconteceu noutras semanas de Assembleia Geral. Foi impossível reunir todos os dirigentes, mas tive uma longa reunião bilateral com o novo ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Hossein Amir-Abdollahian, que se encontrou também com muitos dos seus homólogos para juntos refletirem sobre formas de avançar.
O resultado digno de maior relevo foi o facto de o ministro ter confirmado que o Irão voltará à mesa das negociações em Viena. Embora o novo ministro dos Negócios Estrangeiros tenha assumido funções há menos de um mês, temos de reatar rapidamente as negociações e de relançar o acordo nuclear com o Irão em todas as suas vertentes – o que implica o regresso dos EUA e o levantamento das sanções, em troca do pleno cumprimento do acordo por parte do Irão. O fulcro da questão será o encadeamento destas etapas. O Irão está a atravessar um momento difícil, os EUA estão claramente a impacientar-se cada vez mais e a situação em geral na região está a criar turbulência, nomeadamente com a tomada do poder pelos talibãs no Afeganistão. Por conseguinte, teremos de trabalhar arduamente ao longo das próximas semanas para aproximar posições e obter resultados.
O caminho a seguir no que se refere ao Afeganistão
O Afeganistão era para mim a terceira prioridade da semana. Com os talibãs a dominarem agora o país e a economia em queda livre, há uma grave crise humanitária que se agiganta. Verifica-se um amplo consenso internacional quanto à necessidade de julgar os talibãs pelos atos que cometem e de não permitir o colapso total do país, o que seria perigoso para toda a região e para a segurança internacional em geral.
Tive oportunidade de me reunir e de debater a via a seguir com vários intervenientes regionais e parceiros internacionais, como o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e os ministros dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, da Turquia e da Rússia. Todas estas conversas evidenciaram claramente a necessidade de trabalharmos em estreita colaboração enquanto comunidade internacional para fazer face à situação no terreno. Temos de dar uma resposta coletiva à situação no país em termos económicos, humanitários e de direitos humanos e de trabalhar na defesa de interesses comuns, como a luta contra o terrorismo, a criminalidade organizada e o tráfico de droga e de seres humanos, seguindo uma abordagem equilibrada em matéria de migração.
"Com os talibãs a dominarem agora o país e a economia em queda livre, há uma grave crise humanitária que se agiganta."
No tocante a todas estas questões, precisamos efetivamente de adotar uma abordagem regional e é em formato regional que trabalharemos, assegurando que os países vizinhos nelas se envolvam a fundo. Procuraremos transpor para um programa de apoio internacional os parâmetros de referência discutidos com os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE durante a reunião informal "Gymnich", nomeadamente no que respeita aos direitos das mulheres e à educação das raparigas. Importará sempre evitar uma proliferação de iniciativas que possam gerar confusão e é com esse objetivo que continuarei a trabalhar.
O Mali e o chamado "Grupo Wagner"
Por último, uma questão que tive de abordar com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo e de discutir com o meu homólogo maliano foi a situação no Mali e a potencial implantação da empresa de segurança privada conhecida como "Grupo Wagner". Tal afetaria negativamente a estabilidade do país e teria consequências inevitáveis na cooperação entre a União Europeia e o Governo de Transição do Mali.
Foi a primeira reunião que tive com o ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov desde o nosso encontro de fevereiro em Moscovo. Há uma mensagem clara que lhe transmiti novamente esta semana: sim, existem diferenças fundamentais entre a Rússia e a União Europeia. Mas, a bem da segurança e da estabilidade mundiais, há também questões em que temos de trabalhar juntos, a começar pelo Afeganistão.
Por último, foram numerosas as outras reuniões que tive ainda durante esta semana agitada: um jantar com os dirigentes dos Balcãs Ocidentais, bem como reuniões com o Conselho de Cooperação do Golfo (na próxima semana, viajarei também para a região) e com os ministros dos Negócios Estrangeiros da Turquia, do Azerbaijão, da Arménia, do Peru, do Chile e ainda com o presidente do Equador e com dirigentes africanos, para citar apenas alguns exemplos. Também assinámos um Memorando de Entendimento com a Colômbia, que fará com que a nossa cooperação avance para a fase seguinte, e realizámos várias reuniões cujo tema foi a América Latina.
"Deixo Nova Iorque com a sensação de que conseguimos fazer ouvir a voz da Europa no que toca a assuntos internacionais e ao desenvolvimento de estruturas universais."
Em suma, deixo Nova Iorque com a sensação de que, juntamente com ambos os presidentes da UE, conseguimos fazer ouvir a voz da Europa no que toca a assuntos internacionais e ao desenvolvimento de estruturas universais que permitam construir um mundo melhor, defendendo afincadamente o multilateralismo e trabalhando com os nossos aliados e parceiros. No que diz respeito ao Irão, ao Afeganistão, à Líbia e a muitas outras questões, é urgente e imperioso que a Europa se pronuncie e sustenha as suas posições com os instrumentos e formas de influência de que dispõe. Assim sendo, é importante que ultrapassemos o diferendo AUKUS entre a UE e os nossos aliados. Temos agora pela frente a árdua tarefa de traduzir as promessas feitas durante as consultas em resultados concretos, no Indo-Pacífico e noutras regiões, enfrentar os desafios universais e contribuir para criar um mundo à imagem dos nossos interesses e valores.
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Para mais informações:
France24 – O diferendo sobre os submarinos "não é um problema só da França", afirma Josep Borrell
EU@UNGA76: Adaptar as respostas mundiais aos desafios globais
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